terça-feira, 21 de setembro de 2010

INTEMPERANÇA(ou Uma para Wania Cristina)

Comprei um desses blocos de papel para treinar a verve, como se diz (vez ou outra envio uma crônica para o jornal). É necessário exercitar a escrita. E o pior de tudo é que eu, analisando friamente, não tenho exercitado porra nenhuma ultimamente, a não ser um ping-pongzinho nas minhas tardes sem ofício e sem função, mirando a bola e simplesmente descendo o braço. É bom, eu até que gosto: as crônicas nem sempre conseguem extrair todas as ferrugens da alma. Só que o ping-pong, descobri depois de matutar um pouco, jamais me transformará num homem famoso e reverenciado, cheio de mulheres lindas e histéricas batendo na minha porta – os chineses, afinal de contas, estão sempre por aí, mirando a bola bem melhor que eu. Acabou então que as piadinhas nas reuniões familiares, os amigos na mesa de bar e a própria vida em si têm me levado direto a tal objetividade universal, às camisas engomadas, aos currículos com mais de cinco laudas, todos cheios de invenções, e, agora, aos tais bloquinhos de papel.
Lembro-me agora do dia em que eu, numa vã tentativa de conseguir a total autonomia financeira, me apresentei na secretaria de transportes da prefeitura municipal: sentado num banco, esperei por mais de quarenta minutos sem que ninguém me notasse – um pessoal analisando papéis, indo e voltando de uma sala para outra, apressados, sem parar. Garanto que Hemingway, numa situação dessas, já teria dado um murro em alguém. Será que ninguém me via? Notei então que, sentado lá no canto, pesando mais ou menos uns 150 quilos, uma espécie de sósia de Barry White olhava para mim.

- Já foi atendido? – ele perguntou.
- Sou Rodriguez – respondi, me empertigando todo -, o novo contratado. Mandaram um aviso, era para eu aparecer por aqui.

Ele se levantou e caminhou até a parede, onde enxerguei algumas folhas de papel dependuradas, nomes e números, dezenas deles. Ficou olhando para aquilo por um bom tempo, murmurando algo.

- Rodriguez – disse, virando-se, logo depois -, o seu nome não consta na lista.
- E isso significa o quê? – perguntei.
- Não sei. Vá até o quarto andar e procure dona Vânia Cristina, ela pode te dizer o que isso significa.

E lá fui eu na direção do quarto andar, à procura de Vânia Cristina, que bem poderia ser uma das leitoras eventuais da minha coluna.
Havia uma recepcionista e ela abriu os seus dentes quando me viu. Talvez me imaginasse algum chefe de gabinete ou candidato a deputado estadual. Com uma voz aguda, me informou que a dona Vânia Cristina estava viajando, só retornaria em alguns dias. Não importava. Sentei-me numa cadeira e contei a ela sobre a minha situação. Ela me escutava atentamente. Quando acabei, me olhou e disse que aquele meu caso só mesmo a dona Vânia Cristina poderia resolver.
Saí dali intrigado, suspeitando que as coisas poderiam não estar indo tão bem como eu gostaria.
Passei alguns dias em casa, lendo livros, vivendo um pouco a Paris dos anos 20. Era uma beleza por lá naquela época. Aproveitei e joguei também umas partidinhas de ping-pong, com o celular no bolso da bermuda, na expectativa, só que ele não deu sinal. Em que lugar estaria Vânia Cristina, eu pensava entre um ponto e outro, a morena dos seios fartos que lia minhas crônicas antes de dormir?

- Ela chegou, mas no momento está numa reunião – me disse a recepcionista, quando voltei.
- Você falou que estive aqui?
- Ainda não. Se quiser, posso te ligar quando ela ficar a par de tudo.
- Certo...

Ela se esqueceu ou não quis falar? Aquela dificuldade de comunicação começava a me preocupar de verdade. O meu emprego sonhado, a realização dos desejos. Algo me dizia que talvez a secretaria de transportes do município não simpatizasse comigo. Será que eu fazia parte de alguma lista negra secreta? Será que investigavam o meu histórico, os dias de maresia, as noites de divagações nas mesas de bar cobrando o seu preço agora? Será que achavam as minhas crônicas ruins? Ou não me conheciam? Eu pensava e a cada instante a minha cabeça enchia-se de dúvidas e de teorias, de quase certezas também. Saí para fumar um cigarrinho, encontrei com o Barry White na escada.

- Ô, rapaz, você sumiu! – ele falou, como se fossemos amigos.
- Ainda resolvendo a minha estória.
- Conversou com a dona Vânia Cristina?
- Estou esperando ela sair da reunião.
- Que reunião? Falei com ela há 10 minutos, não tinha nenhuma reunião marcada.
- Mesmo?
- É.

Apertei a mão de Barry, dei uma desculpa esfarrapada, falei que tinha me enganado sobre a tal reunião e retornei ao quarto andar.

- Soube que dona Vânia voltou, minha querida, gostaria de conversar com ela agora.
- Olha, vou ser sincera com você, a dona Vânia não vai poder te atender hoje.
- Porquê?
- Porquê ela está muito atarefada.
- Pois então você diz a ela que eu vim tratar do assunto do jornal.
- Como assim? – ela me perguntou.
- Escrevo para o jornal também, se você não sabe. Creio que ela deve estar por dentro dessa minha visita.

A recepcionista me olhou com aquela cara que tinha, uma cara estranha, o nariz apontando para frente, a boca meio retorcida, como se eu estivesse falando chinês ou qualquer coisa assim. Depois de alguns segundos, no entanto, acabou entrando na sala de dona Vânia e fechou a porta atrás de si. Eu então estava sozinho. Havia um quadro de Jorge Amado na parede, ele de bigode e camisa florida sorrindo para mim. Eu tentava imaginar o que o fazia tão feliz.
A recepcionista voltou.

- Dona Vânia Cristina vai te atender, ficou curiosa sobre esse jornal.

Eu havia conseguido.
Caminhei até a porta decidido, da mesma forma, imagino eu, que Hemingway caminharia também. Girei a maçaneta e entrei na sala. Vi outros quadros na parede, Jorge sempre lá, um tapete vermelho no chão, um conjunto de cadeiras no centro, e, do outro lado, colada à janela, uma imensa mesa de madeira de lei, dessas antigas. Era lá que Vânia Cristina estava, metida num vestido amarelo, um colar de bolinhas azuis ao redor do pescoço. Foi uma surpresa pra mim. Ela não tinha os lábios carnudos, como eu imaginara, nem os seios fartos ou as pernas grossas, tampouco a sensualidade, o jeito carinhoso, a graça que me fez acreditar ter. Vânia Cristina, a mulher que eu pensara ser a minha sorte e a minha salvação, era apenas uma coroaça, com cerca de sessenta e poucos anos, e olhava-me com uma cara de tédio, como se eu fosse o carteiro ou o homem do gás.

- Opa - eu disse para ela.
- Boa tarde, em que posso ajudar?

E ali, naquela sala, de frente para o que a minha imaginação havia me levado, eu repentinamente perdi a voz e os pensamentos se embaralharam – em questão de segundos, estava completamente paralisado. Ela, por sua vez, levou uma das mãos ao queixo e ficou me observando.havia algo entranhado ali. Notei seu rosto seco e afundado, as veias azuladas entre os anéis. Era diferente, mas outra vez o gosto amargo ganhando o céu da boca. Jorge me olhando na parede, feliz, e eu nunca fui muito chegado nele nem nas estórias dos coronéis. Tinha grande valor, claro, mas a minha vida era outra, feita das sombras dos prédios e do sol que marcava o asfalto, a melancolia das cidades e das pessoas, minha vida era um tapa na cara dos sonhos, aquela velha olhando para mim, coçando o seu queixo, de certo achando que eu era algum tipo de imbecil ou de retardado, considerando aquela minha visita muito maçante, nada demais no seu rosto, nada de menos, somente um enorme desconforto, refletindo talvez o desconforto que havia no meu.

- Algum problema, meu filho?

Então descobri que eu não tinha o que falar para ela, embora de alguma forma soubesse que teria de falar algo. Por isso, quem sabe, falei a primeira coisa que me veio à cabeça naquele instante, com uma voz um pouco alta para os padrões da sala.

- Você votaria em alguém que usa peruca, Vânia?
- Não entendi – ela respondeu, levantando uma das sobrancelhas -, é sobre isso a matéria para o jornal?
- Não existe matéria- eu disse de uma vez - Queria apenas te conhecer e, me disseram que você resolveria o meu problema. Mas você me enganou. Aliás, todos neste prédio me enganaram, todos, a não ser o Barry lá embaixo. Só ele respeitou os meus sentimentos, só ele tem uma alma digna de apreciação.
- Olha, Rapazinho, hoje não estou com muito tempo para brincadeiras – ela falou, alterando-se.
- Quem não tem tempo para brincadeiras sou eu, minha senhora. Já estou de saco cheio de brincadeiras, tenha certeza disso. Me diga: o que é que vocês viram no meu currículo que fosse tão ruim? São as minhas crônicas? Me diga, Vânia, eu quero saber. Tenho esse direito. Não pense que, por ser assim tão bajulada, pode ir pisando nos outros, como se não fossemos nada, fazendo o que quiser. Saiba que, embora ainda não tenha conhecimento, eu sou um dos grandes também, eu sou um dos caras! E saiba de outra coisa, minha querida: tudo o que fazemos nessa existência, volta pra nós um dia – tanto faz se for do lado do bem ou do mal. Anote isso. É possível que te seja útil nesse restinho de vida que ainda tem.
- Você é completamente louco – ela gritou, usando de uma força que não imaginei que viesse a ter – saia de minha sala agora, já, antes que eu chame toda a guarda municipal!

Então os segundos em que ficamos nos encarando demoraram muito a passar. A porta foi aberta atrás de mim, escutei a voz da recepcionista perguntando se estava tudo bem, dona Vânia. Vânia não respondeu, eu também não. Já tínhamos falado o suficiente. Virei-me e saí, deixando-as para trás, desci as escadas e logo ganhei as ruas, juntando-me às pessoas que caminhavam de um lado para o outro sem parar. Tudo parecia envolto em neblina e confusão. Eu pedia para sair daquela confusão. Talvez amanhã, pensei, talvez amanhã eu venha a ter alguma resposta, elas que chegam sempre atrasadas. Talvez tudo clareasse com o tempo. Mas, pensando bem, se não clareasse, também não fazia mal: eu ia apenas continuar do mesmo jeito, o que não era de todo ruim - acordando a hora que quisesse, deixando a minha barba crescer sem preocupação, os cabelos ao vento, a intemperança, e me restaria ainda a melhor parte de tudo – os meus blocos de papel na estante e as minhas tardes sem ofício, mirando o imaginário chinês do outro lado da mesa, cortando a bolinha sem piedade ou misericórdia - da mesma forma, imagino eu, que Hemingway cortaria também.

2 comentários:

Anônimo disse...

Porra!!!!! Muito bom!!!!!!!!!!!
Essas suas biografias alteradas volta e meia me surpreendem.
Grd abrç.

Zezo Maltez

Fanzine Episódio Cultural disse...

A ACADEMIA MACHADENSE DE LETRAS (Machado-MG) comunica que estão
abertas as inscrições para o VIII Concurso Plínio Motta de Poesias, do
ano 2011.
Entrem em contato para adquirir o Regulamento:
a/c Carlos Roberto machadocultural@gmail.com
ESTE CONCURSO ESTÁ ABERTO PARA TODOS!

OBS: O VALOR DA INSCRIÇÃO ( 2 REAIS) PODE SER COLOCADO DENTRO DO ENVELOPE COM AS 6 CÓPIAS DA SUA POESIA.